A carteira do estudante serve de escudo e de batuque. O ator entra em cena recitando palavras e distribuindo olhares e sorrisos carinhosos. Somos levados a pensar a respeito da importância da palavra e das múltiplas possibilidades de leitura que elas nos garantem. Esse é o prólogo, para assistir a peça é necessário OCUPAR o espaço do teatro.
A peça é dividida em três momentos: Confissão de um Caboclo, Provocação e Condenação. O ator divide o palco com o público que fica na lateral. O cenário é composto por sacos de carvão e rolos de papel kraft. O carvão é despejado no chão e sobre ele um homem confessa o assassinato de sua mulher com uma lâmpada suspensa sobre a sua cabeça, o foco esta na narrativa do caboclo.
Seu doutô sou criminoso,
Sou criminoso de morte,
Tô aqui pra me entregá.
Vosmicê fique sabendo
Que a muié que traz a sorte
De atraiçoá o esposo
Só presta pra se matá.
A Poesia Confissão de um caboclo é de Zé da Luz “Tá aqui a faca assassina / E o sangue nas minhas mão.” As mãos estão cobertas de carvão, carvão das mãos do trabalhador explorado. Nesse momento, é necessária uma digressão para falar das lembranças que a peça me trouxe, durante essa cena fui conduzida às lembranças da cidade onde cresci com minha família, uma cidade simples e de gente simples, cidade de muita exploração. O cortador de cana, o carvoeiro, o agricultor sem terra, homens sem instrução que chegavam para minha mãe (na época ela tinha uma mercearia) pedindo para que ela os ajudasse com alguma ligação, eles não sabiam ler números, que ela lesse algum documento, ou mesmo uma carta enviada pelo filho distante. Homens que por não saber ler eram induzidos aos empréstimos bancários mais mirabolantes, homens que não entendiam seus direitos quanto trabalhador, homens que eram facilmente ludibriados pelos comerciantes da cidade. Lembro também da minha falta de leitura, da minha ignorância ao olhar para eles e não entender que estavam submetidos a uma completa exclusão oriunda do sistema capitalista. Olhar que acompanha grande parte da cidade que se diz alfabetizada, detentora do privilégio da leitura, mas incapaz de ler ou compreender o próprio sistema em que está inserida.
O segundo momento da peça, o das provocações, nos remete exatamente a essa discussão. Por meio do texto de Luís Fernando Veríssimo somos imediatamente levados a questionar o que é a violência como ela se constitui e como está naturalizada em nosso meio. A exploração, a fome, a falta de educação, de saúde e de terra são compreendidas como fator natural dessa sociedade, violência para uma parcela considerável da população está em se revoltar diante dessas condições. Também nos deparamos, nesse momento, com uma das cenas mais bonitas da peça, o aluno que já adulto aprende as letras, aprende a escrever o nome da esposa. A esperança de quem começa a decifrar o mundo por meio da palavra. As palavras começam a preencher o papel Kraft, começam a traduzir o sentimento daqueles que a encontram pela primeira vez. Mais uma vez sou conduzida para fora do teatro. Recordo-me do olhar dos meus alunos de EJA (Educação de Jovens e Adultos) encantados pela oportunidade de estar em uma sala de aula. Lembro-me da cortadora de cana que saia da sua casa todos os dias cinco horas da manhã e voltava às nove da noite, mas que não perdia uma aula sequer. Do seu olhar ao chegar para mim e mostrar o texto que ela tinha feito em casa, do seu sorriso de alegria quando eu dizia que ela escrevia tão bem e, principalmente, sua vontade de continuar estudando.
Por fim, chegamos à parte da condenação. Com um estojo para molhar os dedos, o ator vai passando pelo público, que em meio a risos e brincadeiras deposita sua digital sobre ele, que vai caindo sobre as pessoas, que o mancham com suas digitais. Sem reflexão e imersos na cena, o público o condena. A carta escrita pela mulher como sinal da traição do marido é lida em cena, sabemos que ela é inocente e descobrimos que o motivo pelo crime e a falta de leitura do marido.
Antes do final, somos remetidos ao papel modificador daquele que detém a leitura, mais uma vez a referência é a da ocupação das escolas. Os alunos trazem as cadeiras na frente do peito, como escudo, e palavras fortes, como ocupação, e a esperança da construção de um mundo mais justo. Nós também somos convidados a desenhar no ar palavras, palavras que darão significado ao mundo.
Karyna Bühler de Mello é integrante do grupo de Grupo de Pesquisa Crítica Literária Materialista (UEM).