Abaixar âncora, por Andresa Viotti

Julio Adrião em "A Descoberta das Américas" durante a abertura da Só em Cena - Mostra de Solos e Monólogos. Crédito da imagem: Renato Domingos.
Julio Adrião em “A Descoberta das Américas” durante a abertura da Só em Cena – Mostra de Solos e Monólogos. Crédito da imagem: Renato Domingos.

Palco vazio, luz branca naquela “caixa de areia” que me pareceu imensa. Mas, não estava vazia, não parecia vazia. A sensação era boa! No entanto, a tal “caixa de areia” pareceu pequena para a atuação de Julio Adrião. Do início ao fim o que de pronto me chamou atenção foi a corporeidade, a fisicalidade corporal do ator, que de tão boa fez com que o texto me parecesse dispensável em vários momentos. As nuanças do texto, junto com um grammelot bem articulado, o uso de onomatopeias envolvia a plateia e os pontos máximos aconteciam quando incorporava a reação dessa plateia à sua desenvoltura no palco. O que também pode ser um problema! Mecanismos da comicidade podem ser notados na adaptação, um tempo cômico muito bem feito e uma escuta muito boa do público, sem contar que utilizar da comédia para se aproximar da plateia, na medida em que leva uma reflexão crítica, é pisar no terreno do cômico por excelência e nesse sentido a comedia é muito séria! Sendo assim, em vários momentos achei desnecessário o uso de alguns estereótipos e o reforço negativo deles. E o que mais me incomodava era perceber que a plateia maringaense, em sua maioria, gargalhava quando o assunto era pinto, bunda, teta, buceta ou quando havia referência aos grupos que são alvo de piadas todos os dias. A atuação de Julio Adrião estava espetacular por si só e não necessitava dar ênfase nesses estereótipos para ser aclamado pelo público.

Andresa Viotti, atriz e integrante do grupo de Grupo de Pesquisa Crítica Literária Materialista. 

Sobre “A Descoberta das Américas”, por Márcia Costa

Julio Adrião esteve em Maringá na terça-feira (22) abrindo a Só em Cena – Mostra de Solos e Monólogos. Um ator excelente e vigoroso, sem sombra de dúvidas! Fez brotar de um palco vazio todos os elementos imagéticos típicos de uma grande saga. Os ritmos variados, a melodia das falas e os desenhos formados pelo seu corpo, na pele de Johan Padan (um narrador totalmente amoral, herói às avessas, uma espécie de Macunaíma) nos levou mar, florestas, Américas adentro.

Embora esteja arriscando aproximações do malandro narrador Johan com Macunaíma, é preciso que se diga que ao contrário de nosso anti-herói tupiniquim, Johan é o representante do colonizador europeu, mesmo estando no nível mais baixo na hierarquia por se tratar de um Zé Ninguém que escapa da fogueira da inquisição, embarcando numa das caravelas de Cristóvão Colombo. Johan é ao mesmo tempo um opressor e um oprimido.

Julio Adrião, em "A Descoberta das Américas" durante a abertura da Só em Cena. Crédito da imagem: Renato Domingos.
Julio Adrião, em “A Descoberta das Américas” durante a abertura da Só em Cena. Crédito da imagem: Renato Domingos.

Seu temperamento se assemelha ao daqueles que se preocupam única e exclusivamente com a sua pele, com a sua barriga e com seus apetites sexuais. Por constituir-se de componentes tão elementares carrega em seus comentários e atos uma imensidão de estereótipos relacionados às mulheres, aos animais e a outras civilizações. Fora de sua terra exerce de forma malemolente toda sua herança opressora subjugando todas e todos. E como um bom anti-herói, sem ética nenhuma. Um personagem com essa constituição não poderia agir de outra maneira.

Julio Adrião, em "A Descoberta das Américas" durante a abertura da Só em Cena. Crédito da imagem: Renato Domingos.
Julio Adrião, em “A Descoberta das Américas” durante a abertura da Só em Cena. Crédito da imagem: Renato Domingos.

E, para mim, essa faceta escrota da personagem, tecida por Dario Fo* e interpretada brilhantemente por Julio Adrião, é que dá a tônica crítica e agudamente irônica desse trabalho. Algumas passagens principalmente relacionadas às mulheres não causam mais tantas risadas como há dez anos, (o que é muito positivo, pois demonstra que estamos em processo de transformação) mas o espaço criado pela peça para discussão e reflexão não acabou. Muito pelo contrário, ouso em dizer que estamos no momento histórico mais propício para isso. E não podemos num momento desses nos furtar ao diálogo.

Digo isso porque percebi alguns incomodados durante a apresentação e fiquei cavoucando com meus botões: será que o incômodo está relacionado a não percepção de ironia? Da não percepção das vozes que gritam nas entrelinhas Bom, ainda bem que na Só em Cena – Mostra de Solos e Monólogos temos a oportunidade de discutir nossas inquietações nos bate-papos! E tomara que usemos esse espaço para crescermos juntos.

*Texto de Dario Fo, inspirado em fatos reais narrados pelo navegador e cronista Álvar Núñes Cabeza de Vaca. Revisita de maneira irônica e crítica episódios ocorridos na Flórida do século XVI, mas a história poderia ser bem daqui, da terra brasileira. Um Zé ninguém de nome Johan Padan, rústico, esperto e carismático, escapa da fogueira da inquisição embarcando, em Sevilha, numa das caravelas de Cristóvão Colombo. No Novo Mundo, nosso herói sobrevive a naufrágios, testemunha massacres, é preso, escravizado e quase devorado pelos canibais. Com o tempo, aprende a língua dos nativos, cativa-os e safa-se fazendo “milagres” com alguma técnica e uma boa dose de sorte. Venerado como filho do sol e da lua, catequiza e guia os nativos numa batalha de libertação contra os espanhóis invasores.

Márcia Costa é atriz e estudante de Artes Cênicas na Universidade Estadual de Maringá (UEM).